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Rio vermelho

  • Foto do escritor: Eliano
    Eliano
  • 25 de jul. de 2020
  • 4 min de leitura

Naquela manhã acordamos com um burburinho que corria todo o Manoel Deodato. Não lembro a data, mas sei que era início de ano por causa das chuvas do verão. Chovera toda a madrugada e o céu estava com a cor de fumaça. A chuva sempre impossibilitava qualquer tentativa de locomoção sem que a lama sujasse nossas roupas e pés. Muito provavelmente era domingo porque eu não fui à escola ou talvez fosse segunda, terça, quarta... e pela força do evento, a professora verificou minha ausência na chamada. O fato é que fui ao encontro da molecada, que já estava toda reunida na esquina, travando um debate caloroso sobre o ocorrido e como se apenas me esperasse, fomos imediatamente, nos atolando pelas ruas lamacentas do Manoel Deodato, conferir a causa de toda aquela discussão. Debandamos para ver com nossos próprios olhos, ainda muito ingênuos, o evento que daria início ao fim da nossa ingenuidade.

Enquanto caminhávamos, somavam-se a nós outras pessoas fazendo o mesmo trajeto. Eram jovens, crianças, adultos, mulheres, homens... todos curiosos e assustados. Nas calçadas, vez ou outra, parávamos em meio às patotas que especulavam, para ouvirmos algum detalhe significativo. As pessoas descreviam a cena com dramaticidade e a nossa expectativa aumentava. Nós prosseguíamos, reproduzindo a mensagem a quem nos perguntasse qual era a novidade:

“Mataram Dodô!”

Dodô não era meu amigo, apenas amigo dos meus amigos. Era mais velho que nós, já roubava e já fumava maconha. Segundo a turma, ele era de rocha, salvava geral nas brigas com os moleques do São Geraldo e do São Benedito. Ao nos aproximarmos da rua em que morava, notamos na lama que escorria e se acumulava em poças, um aspecto rubro. Parecia que a terra sangrava. Em frente à sua casa formava-se um tumulto de gente que chegava pelas duas entradas da rua. No epicentro do círculo de pessoas, Dodô caído de bruços sobre uma poça de lama e sangue, seria a imagem que nos assombraria por todo aquele resto de verão. O sangue minava incessante de um buraco na lateral da sua barriga e de outros vários golpes distribuídos pelo corpo. No pescoço, havia cravada uma faca peixeira de cabo cerrado.

Não demorou muito para a chegada da polícia, que isolou o local com uma faixa amarela e cobriu o pobre moleque com um lençol feito de rede que pertencia ao próprio morto. Não lembro se havia outras pessoas chorando, além da irmã mais nova de Dodô, que todos chamavam de Pretinha. Aquela era a segunda vez que eu a via de tão perto. A primeira tinha sido na noite passada, quando ela beijou um dos meus amigos na boca numa brincadeira que a turma inventava para começar os namoricos infantis. Os olhos das pessoas, ora estavam nela, que derramava lágrimas de maneira surreal; ora, estavam em seu irmão, que derramava um sangue espesso.

A multidão que se acumulava, começou aos poucos a se dispersar devido a volta da chuva torrencial que caía sobre o Manoel Deodato e molhava os vivos e o morto. Os policiais se abrigaram nas duas viaturas, mas antes pediram para que os populares (é assim que chamam as pessoas que ficam em torno dos meninos assassinados em vias públicas) mantivessem a distância. A chuva, que não respeita autoridade, ia espalhando todo o sangue, fazendo a rua lembrar


um rio vermelho.

Nós ficamos lá sob a chuva impressionadíssimos e assustados durante algum tempo. O cobertor colocado sobre Dodô tornava-se transparente ao passo que molhava e já era possível ver novamente com nitidez o seu corpo extremamente magro sem vida. Não me recordo se era diferente antes. Também ficava à mostra a faca peixeira de cabo cerrado cravada em seu pescoço.

O rosto, nós não conseguimos ver em momento algum. Estava enterrado na lama caudalosa que aumentava com a chuva intensa. Também estávamos atolados até os tornozelos, em silêncio, como se fosse aquele já o velório do nosso amigo. Melhor dizendo: amigo dos meus amigos. Eu sentiria o que eles estavam sentindo no decorrer dos anos, quando aqueles que parados ali comigo, protagonizariam, um por um, o mesmo filme.

E o sangue de Dodô não cessava.

O corpo só poderia ser removido pela equipe do ITEP, que não havia previsão de chegada. Enquanto isso, Pretinha chorava, a chuva caia e Dodô sangrava. Eu me questionava em silêncio, sobre quantos litros de sangue poderia conter em um corpo humano tão raquítico. Olhava para meu corpo, olhava para o corpo dos meus amigos e olhava para o corpo de Dodô. Vez em quando, ouvíamos um barulho de motor de carro e pensávamos se tratar do ITEP que finalmente o levaria para algum lugar limpo tirando seu rosto da lama e arrancando do seu pescoço aquela faca peixeira medonha de cabo cerrado. Engano nosso.

Com o tempo passando e a chuva caindo, o número de populares diminuía. Os adultos saíam com cuidado, pisando no barro de louça escorregadio, apoiando-se uns aos outros, com receio de pisarem no sangue que escorria como afluentes. Uma das viaturas de polícia também se foi, restando a outra com três homens dentro que manteriam a vigilância.

Ao meio dia, quase todos já haviam ido embora, as mulheres foram cuidar de seus almoços, os homens foram procurar serviços ou jogar baralho, as crianças voltaram a brincar, a mãe de um dos nossos foi buscá-lo. A polícia foi mudar o turno. Restou eu e os meninos, Pretinha, que ainda chorava sentada numa pedra próxima ao corpo, a chuva e o sangue. Às duas da tarde, a polícia não voltou, as pessoas não voltaram, e nós fomos embora. Restou Pretinha chorando sentada na pedra, a chuva e Dodô sangrando.

 
 
 

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