top of page

Acabou. O sonho do moleque, aquele sonho acabou!

  • Foto do escritor: Eliano
    Eliano
  • 15 de ago. de 2020
  • 2 min de leitura

Acabou. O sonho do moleque, aquele sonho acabou.

O cortejo fúnebre de Buiú era embalado por esse som enquanto entoavam em uníssono seus afetos e desafetos, fazendo a cidade inteira para pra assistir àquele espetáculo público. O neto de Antônia Preta rezadeira era afinal de contas amado por alguns, apesar de ser odiado por muitos. Ladrão desde novo. Não lembro bem o dia em que Buiú passou a ser respeitado pela comunidade como ladrão. Conheci-o ainda criança quando fazíamos parte do mesmo projeto social. Nessa época, embora eu fosse mais forte que ele, temia-o. Não que ele fosse capaz de me ganhar numa briga mano a mano, mas Buiú era ruim. Não tinha pudor em pegar um moleque na saída da escola se fosse pelas costas. Buiú não era bom de briga. Era muito pequeno pra idade, muito magro em relação aos outros e quase sempre apanhava quando se metia quase sempre em confusão.

"Acabou. O sonho do moleque, aquele sonho acabou. Não foi Deus que levou. Foi o homem que matou."

Não posso dizer que Buiú tivesse algum sonho na vida. Ele sempre dava um jeito de citar uma outra música no meio das suas gírias.

"'Camarão que dorme a onda leva', boy."

Buiú não dormia. Passava as madrugadas subindo e descendo a rua do posto, cuidando dos corre.

Certo dia, Buiú dormiu no ponto. Tentou um arrombamento na casa de um juiz de direito. Moleque ousado. Calculou errado o horário em que a casa estaria vazia. Tomou tiros na perna enquanto tentava pular o muro, se enrolando com a cerca elétrica. "Camarão que dorme a onda leva, boy. Vacilei. Perdi a perna, mas se meto esse trampo, essa hora tava com de boa só curtindo uma ostentação.".

Foi aí que Buiú ficou com uma perna só. Apelidado à contragosto de saci Pererê.

Preto traquino. Não usava bengala nem cadeira de rodas. Ia pra lá e pra cá de bicicleta, pedalando de apenas um lado com certa habilidade.

"Acabou. O sonho do moleque aquele sonho acabou.".

Ninguém sabe quem matou Buiú. Foi uma queima de arquivo. Dizem. Talvez tenha sido traído por um de seus companheiros. Talvez ele tenha traído alguém mais covarde que ele. As pessoas dos outros cantos da cidade comemoraram a morte de Buiú. Disseram que era menos uma alma sebosa pra assombrar os cidadãos de bem. CPF de bandido cancelado. No Manoel Deodato ocorreu uma certa comoção popular. Todo mundo conhecia Buiú neto de Antônia Preta rezadeira. Antônia Preta não chorou diante do corpo morto de Buiú. Dizia que suas lágrimas haviam secado anos antes, quando Buiú chorava com fome e todo dia morria um pouco. Mas ninguém liga pra Antônia Preta.

Buiú tinha algumas namoradas. Algo que nós não entendíamos. Buiú era feio. Não tinha nenhum charme. Não era um desses bandidos fascinantes do cinema nacional. Buiú era um ladrão de verdade. De carne e osso e sangue. Pouca carne. Faltando uma perna.

O cortejo de Buiú cruzou a cidade inteira naquela tarde de sol quente. Saindo do Manoel Deodato, passando pelas ruas mais nobres, a caminho do cemitério público. Até hoje, as crianças cantam aquele refrão fúnebre, que imediatamente me lembra Buiú. Buiú de uma perna só.




 
 
 

Posts recentes

Ver tudo
Os jovens gostam de dançar

25 de dezembro. natal de 2020. interior. alto sertão potiguar. aglomerações em vários pontos da cidade. pandemia. bar na zona rural....

 
 
 
Damião cabeceiro

damião cabeceiro é ligeiro num instante descarrega um caminhão damião tem cheiro de sol e calos na mão. quando damião acaricia a...

 
 
 
Rio vermelho

Naquela manhã acordamos com um burburinho que corria todo o Manoel Deodato. Não lembro a data, mas sei que era início de ano por causa...

 
 
 

Comments


Post: Blog2_Post

©2020 por Eliano. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page